domingo, 19 de julho de 2009

O museu de arte e a construção da democracia cultural

Palestra proferida no Seminário
Museu x Comunidade: uma experiência concreta
Museu de Arte do Espírito Santo - 1º de julhode 2009
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Por que um museu deve abrir suas fronteiras para a comunidade? O que se ganha com a relação museu-comunidade? Quem ganha?
Não pretendo aqui responder com certeza estas questões. Busco, antes, assumi-las como um campo de inquietação e de oportunidade para formular propostas institucionais de atuação.
Em estudos e pesquisas sobre cultura e cidadania surgem dois motes que implicam propostas de atuação de instituições culturais, como museus de arte, em relação à comunidade.
O primeiro é: “inclusão cultural”.
Esse mote atesta tanto a existência de algum bem (no caso dos museus de arte seria seu acervo, os conhecimentos a que remete, a cultura ligada à história das artes visuais, o conhecimento ocidental que com elas dialoga, por exemplo) como a afirmação da acessibilidade a esse bem estar restrita apenas a uma parcela da população, significando uma situação de exclusão de setores da sociedade.
As políticas de inclusão cultural buscam ampliar a visitação aos museus, divulgando-os, criando parcerias com escolas, instigando a comunidade a conhecê-los, oferecendo serviços que viabilizem a fruição, como intermediações que dialogam com os visitantes e acrescentam informações sempre que necessário e quando por eles solicitadas. Procuram também oferecer atividades que permitam experimentar o fazer em diálogo com os conceitos envolvidos em cada tipo de produção, conhecer aspectos relacionados a obras, objetos ou realizações em exposição etc.
Outro mote é “democracia cultural”. Ele não anula o anterior, mas o inclui e vai além.
A expressão “democracia cultural” implica a adoção de uma postura ao mesmo tempo de orgulho e de humildade por parte dos profissionais envolvidos com a cultura oficial. Orgulho pelo que se possui, no caso do museu de arte, o já descrito anteriormente. Humildade por saberem que desconhecem a diversidade da produção visual advinda dos diferentes grupos que compõem a sociedade, sobretudo a plural sociedade brasileira.
Embora um museu de arte estadual não seja apenas da cidade, para não complicar muito o debate sobre a relação do museu com a comunidade, vou considerar esse equipamento a partir do espaço urbano onde fisicamente se encontra localizado.
Vejamos, nas palavras de Jorge Luiz Barbosa, Coordenador do Observatório de Favelas e professor da Universidade Federal Fluminense, motivos que endossam a necessidade de estimular uma democracia da cultura que permita a construção de uma identidade urbana plural:
A cidade é o encontro dos diferentes. A cidade é a expressão da pluralidade de vivências culturais, afetivas e existenciais. A padronização cultural da vida rouba da cidade a criatividade necessária para inventar a alegria e a felicidade. A homogeneização das práticas socioculturais enfraquece o significado do conviver e do aprender com a presença do outro. Significa dizer, portanto, que é preciso reconstruir a identidade da cidade pelo reconhecimento da diversidade cultural como um valor da existência.[1]
Quando, no final dos anos 40 e início dos 50 do século passado, surgem nossos primeiros museus de arte moderna, como o MAM de São Paulo e o do Rio de Janeiro, 36% da população brasileira, em torno de 18.780.000 pessoas, residia nas cidades.
Meio século depois, em 2000, praticamente no ano seguinte ao da criação do MAES no Espírito Santo, 81% dos brasileiros estavam morando nos centros urbanos, quase 170 milhões de habitantes.
Esse adensamento das cidades brasileiras ocorreu sem planejamento. Parte do fluxo de migrantes do campo chegou aos centros urbanos, por exemplo, sem condições de comprar ou alugar um imóvel. Para morar e sobreviver precisou invadir terrenos, improvisar moradias e inventar atividades econômicas informais.
Estes problemas sobrepuseram a outros anteriores, que só recentemente começam a ser enfrentados com políticas públicas, como é o caso da inserção dos ex-escravos como cidadãos na sociedade e dos índios que resistiram ao massacre da política colonizadora.
A história de nossa recente democracia compõe com a realidade de desigualdades existente no país. Dos 112 anos desde a proclamação da República vivemos com liberdade partidária e direito a voto secreto apenas em 41 anos;[2] pouco mais de um terço da existência de nosso sistema republicano.
Somos um país de muitas realidades, de práticas socioculturais diversas e diferentes “cidadanias”, incompletas cidadanias, que se refletem na esfera da cultura. São desiguais as condições para criar, fazer circular a produção e fruir o produzido. Trocamos poucas figurinhas. Desconhecemo-nos. Desconhecemos a concretude da violência a que está submetida grande parte da população urbana deste país. Não é a toa que “Cidade de Deus”, filme dirigido por Fernando Meirelles, por exemplo, foi um soco no estômago de muitas pessoas que podem frequentar cinema neste país. E quando falo ‘desconhecemos’ refiro-me aqui aos incluídos nos circuitos oficiais das artes.
Mas a desigualdade de acesso ao fazer, de colocar em circulação o produzido e de fruir também faz de nós frequentadores do circuito oficial excluídos da produção visual realizada fora desse circuito, e daquela que nem mesmo chega a se realizar, por falta de condições propícias.
Hélio Oiticica, a partir de sua imersão na Mangueira, gera uma abertura da arte brasileira a outro tipo de pensamento visual, de definição de obra, a sinestesias do corpo/parangolés, trajetória essa interrompida no país durante a ditadura militar.
Pensando nele e em Emanuel Nassar e tantos outros que foram atrás da construção de visualidades e experiências produzidas fora das fronteiras oficiais é que imaginei uma das tarefas possíveis a um museu de arte que se preocupe com a construção da democracia cultural.
Aqui volto a pensar no MAES e na experiência Piedarte.
Em parceria com as escolas que atendem crianças e jovens do bairro Piedade (Vitória) e com o apoio dos artistas educadores do projeto Piedarte, que com sensibilidade e profissionalismo afirmaram um encontro mediado por construção de visualidades com os pequenos moradores/crianças do bairro, poderia ser desenvolvido um trabalho com os alunos de registro das produções visuais do bairro/população. Visualidades essas que abarcam: o corpo e sua produção, a ousadia dos cortes de cabelo, das roupas; as resoluções plásticas da arquitetura e da organização dos espaços internos das habitações, dos móveis, das dispensas, bem como das áreas externas, dos becos, ruelas, vendas; os fanzines ou outros materiais de divulgação de grupos de música locais etc.
Essas produções visuais podem ser discutidas entre moradores do bairro, considerando, por exemplo, as sensações que causam no observador, a relação entre essas sensações e a forma como os elementos visuais foram tratados, o diálogo que estabelecem com as imagens veiculadas pelos meios de comunicação, a comparação das soluções estéticas encontradas com a produção de artistas brasileiros que dialogam com esse tipo de composição, a pertinência entre o desejado por quem as produziu e o efeito final, as técnicas utilizadas etc.
Essa pesquisa pode iniciar um banco de imagens no MAES que possibilite acompanhar mudanças ao longo do tempo e suscitar estudos sobre sua iconografia. Ela pode ser difundida através de publicações em papel e/ou em meio virtual.
A vivência desse processo propicia um encontro dos moradores com sua produção, dos professores, dos artistas/educadores, dos monitores do MAES com o imaginário visual dessa população. Favorece a intermediação entre as exposições do museu, os conceitos/conhecimentos envolvidos nos objetos expostos e o repertório visual dos visitantes. Aprofunda o diálogo entre professores e alunos e entre os artista/educadores e a comunidade.
Ela constitui uma etapa importante, estimulante, porém não suficiente para viabilizar a produção de visualidades e sua circulação por parte dos moradores da Piedade. É preciso criar ateliês livres, com recursos mínimos e interlocução sensível e profissional, inventiva, lúdica e ao mesmo tempo metódica e rigorosa,[3] que estimulem e permitam a produção de objetos, imagens, vídeos por parte de crianças e jovens que se identifiquem com essas formas de expressão. É preciso estabelecer locais de exposição da produção resultante. Interessante seria que fossem criados ateliês em vários bairros e que se estabelecesse um período anual em que todos estivessem abertos ao público para visitação, quando poderiam ser organizadas excursões escolares para percorrê-los.
Embora nem toda a produção visual daí resultante necessariamente tenha força suficiente para se manter por si como um bloco de sensações, uma das condições necessárias, segundo Deleuze e Gattari, certamente envolverá sensações, percepções e afetos. A interlocução sobre sua concepção, produção e resultado propiciará uma troca existencial sobre as coisas do mundo e da vida, inserindo os interlocutores como sujeitos criativos, favorecendo, como diz Jorge Luiz, inventar a alegria e a felicidade.

Bibliografia
BARBOSA, Jorge Luiz. Cultura e território como política pública. Portal da Fundação Perseu Abramo. Disponível em: <http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/makepdf.php?storyid=3897> Acesso em: 30 jun. 2009. BOTELHO, Isaura; FIORE, Mauricio. O uso do tempo livre e as práticas culturais na Região Metropolitana de São Paulo: relatório da primeira etapa da pesquisa. Centro de Estudos da Metrópole. São Paulo, 2005. Disponível em: http://www.centrodametropole.org.br/t_pesq_antes.html Acesso em: 15 out. 2008. BOUSQUAT, Aylene; COHN, Amélia. “A construção do Mapa da Juventude de São Paulo”. Lua Nova, São Paulo: Cedec, n° 60, 2003, pp. 81-96 (ISSN 0102-6445) CAMPOS, Haroldo de. Entrevista à Folha de São Paulo de 26 de julho de 1987. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Tradução Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Munoz. Coleção TRANS, Editora !34 DiverCidade: Revista do Centro de Estudos da Metrópole. Cultura e Uso do Tempo Livre na Metrópole. En publicación: DiverCidade: Revista do Centro de Estudos da Metrópole, n. 1. CEM/CEBRAP, Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, São Paulo, Brasil: Brasil. Abril-mayo-junio, 2004. Acceso al texto completo: http://www.centrodametropole.org.br/reportagens_cultura.html Prefeitura da Cidade de São Paulo. Mapa da juventude, SEPP: Coordenadoria da Juventude. SP: S.d.. Disponível em: http://portal.prefeitura.sp.gov.br/secretarias/participacao_parceria/coordenadorias/juventude/projetos/0002 Acesso em: 16 out. 2008. RIBEIRO, Célia. Pesquisas e indicadores de cultura. Instituto Jones dos Santos Neves. No prelo.
Notas
[1] BARBOSA, Jorge Luiz. Cultura e território como política pública. Portal da Fundação Perseu Abramo. Disponível em: http://www2.fpa.org.br/portal/modules/news/makepdf.php?storyid=3897 Acesso em: 30 jun. 2009.
[2] Três anos do governo Constitucional de Getúlio Vargas (de 1934 a 1937), dezenove anos entre 1945 e 1964, e os dezenove anos compreendidos entre o retorno das eleições livres após a ditadura militar, em 1990, aos dias de hoje.
[3] Atributos que Haroldo de Campos conferiu a Hélio Oiticica em entrevista à Folha de São Paulo de 26 de julho de 1987.

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